Um gigante adormecido na beira da estrada
Às margens do Rio Redondo, no silêncio da Estrada da Comunidade de São Roque, em Pedras Brancas, repousa um gigante adormecido que muitas vezes passa despercebido por quem trafega por ali. As ruínas do Moinho Pedras Brancas, cobertas pelo tempo e pelas marcas do vento, guardam histórias que resistem ao silêncio.

Às margens do Rio Redondo, no silêncio da Estrada da Comunidade de São Roque, em Pedras Brancas, repousa um gigante adormecido que muitas vezes passa despercebido por quem trafega por ali. As ruínas do Moinho Pedras Brancas, cobertas pelo tempo e pelas marcas do vento, guardam histórias que resistem ao silêncio. Este moinho, construído com o suor e a coragem de Antônio Ballardin, não é apenas um monumento físico, mas um testemunho de uma época em que as mãos calejadas moldavam não apenas o pão, mas também o espírito de uma comunidade inteira.
Antônio chegou a Pedras Brancas no ano de 1913, trazendo consigo sua esposa, Maria Scopel, e uma determinação inabalável. A terra era bruta e o isolamento avassalador, mas Antônio enxergava além das dificuldades. Com uma casa de tábuas rachadas e o apoio da família, começou a plantar milho e trigo, criar porcos e desbravar as densas florestas que cercavam o Rio Redondo. Porém, foi ao construir um moinho, na década de 1920, que ele deu vida a um sonho que mudaria a história da região. Ele solicitou ajuda a alguns conhecidos de Flores da Cunha para realizar a instalação. Esse moinho produzia farinha para as pessoas da região e cobrava 1 Fiorin por saco moído.
O estabelecimento foi chamado de Moinho Pedras Brancas e auxiliou muito os moradores locais que plantavam trigo e milho. A farinha era produzida por meio de uma grande roda d’água lateral que movia o maquinário interno. Em épocas de seca, a família fazia o possível para que ninguém ficasse sem farinha. Muitas pessoas de fora traziam milho e trigo para moer no moinho, em um sistema de trocas que também favorecia os moradores. O valor da moagem podia ser pago no final do ano, e as famílias com maiores dificuldades entregavam mais milho ou trigo, que posteriormente era vendido.

Com o passar do tempo, novas instalações surgiram, e a farinha produzida pelo Moinho Pedras Brancas começou a ser reconhecida pela qualidade. Em 1930, a inauguração de um novo moinho foi anunciada em São Marcos, como registrado no Jornal O Popular, de Caxias do Sul, em abril de 1930:
“Fundação de um Moinho de Trigo – Inaugurou-se, no dia 23 do mez findo, em S. Marcos, neste município, um moinho de trigo de propriedade do Sr. Antonio Ballardin. O referido moinho foi installado com machinario moderno de procedência europea, achando-se em condições de fornecer as melhores qualidades de farinha. A inauguração deste moinho vem augmentar o número dos já existentes neste município, cooperando para o sempre crescente desenvolvimento industrial do nosso município. Faz a instalação do machinario, o Sr. Paulo Roscher, engenheiro residente em Porto Alegre.”
Anos depois, Antônio vendeu seu moinho para a família Pessini, e na década de 1940 construiu um novo moinho com amplas instalações às margens do Rio Redondo, um pouco abaixo do antigo. Esse moinho, hoje em ruínas, era um espetáculo de funcionalidade e simplicidade. O assoalho de madeira, feito com pinheiros das matas locais, exalava o aroma doce de trabalho e tradição. As máquinas foram compradas com muito sacrifício. Antônio, homem simples que fumava cigarros de palha, enfrentou dificuldades ao negociar os equipamentos. Em uma ida a Caxias do Sul, foi ridicularizado por funcionários da empresa de Aristides Germani, que duvidaram de sua capacidade financeira. Mais tarde, comprou o maquinário à vista na Casa Bromberg & Cia, de Porto Alegre, frustrando os que haviam o subestimado. Os descendentes recordam com carinho os detalhes dos cômodos do antigo moinho. No último andar, uma guia ostentava as palavras de Remy Ballardin, neto de Antonio: ORDEM E PROGRESSO, ONDE NÃO HÁ ORDEM NÃO HÁ PROGRESSO”.

Mesmo cego de um olho, Antônio percorreu 140 km até Porto Alegre para tratar problemas de saúde. Após uma cirurgia na bexiga, continuou sofrendo dores até o fim da vida. Seu falecimento, em 1958, foi amplamente sentido na comunidade sãomarquense, conforme relatado nos jornais da época:
“Falecimento muito sentido – Faleceu no dia 8 deste, o senhor Antonio Ballardin, homem de braço que durante sua vida foi dedicado principalmente a agricultura deixando respeitável fortuna adquirida pelo seu trabalho honesto, duro e continuo. Operado duas vezes, em operações melindrosas. Com doenças duras e doloridas. Veio a gravar sua situação a cegueira e por fim a surdez. E o Antonio não disse um “ai, não posso mais”. E isso por longos anos, ele mesmo chegava a consololar os outros. Belo exemplo a ser por muitos imitados.”
Com sua morte, a administração do moinho passou aos filhos. No entanto, o tempo não poupou o moinho de dramas e tragédias. Ainda em 1958, no dia 13 de outubro, Henrique Ballardin, neto de Antonio, caiu de uma janela do segundo andar. Levado a São Marcos no hospital do Dr Afonso Stich, faleceu no dia seguinte de traumatismo craniano e hemorragia cerebral no auge dos seus 21 anos.



Por muitos anos, o moinho atendeu moradores de regiões distantes, muitos vinham das planícies de Criúva ou do litoral, pois buscavam a farinha que era famosa por sua qualidade. O moinho foi finalmente desativado na década de 1990 e, na noite de 15 de dezembro de 1997, encontrou seu final destino ao sofrer um incêndio, conforme relatado pelo Jornal “O Pioneiro” na época:
Fogo destrói moinho desativado
São Marcos – Um incêndio destruiu o prédio do antigo Moinho Pedras Brancas e a residência do agricultor Renato Ballardin – ambos na Capela São Roque – por volta da meia-noite de segunda-feira. O fogo queimou maquinários e quase toda a estrutura do local, exceto algumas paredes de alvenaria. Os bombeiros evitaram que as chamas atingissem a casa do irmão de Renato, o agricultor Dorneles Ballardin. O perito da Polícia Civil Claúdio Machado efetuou levantamento no local para buscar as causas do incêndio. O caso está sendo investigado pela Delegacia de Polícia (DP) de São Marcos. O fogo foi provocado possivelmente por curto-circuito, pela avaliação preliminar da polícia.
Após destruir o moinho, as chamas se alastraram para a residência de Renato, que teve tempo de salvar apenas uma televisão, conforme apurou o policial Nelson Nascimento. A moradia dele ficava adjunto ao moinho. Os mobiliários, incluindo roupeiros, mesas, cadeiras e camas, foram queimados. Soldados do Corpo de Bombeiros de São Marcos atenderam à ocorrência com auxílio da corporação de Caxias do Sul e dos bombeiros da empresa Marcopolo.
O moinho, de propriedade da família Ballardin foi construído em 1940 para produzir farinha de milho e trigo. O estabelecimento estava desativado a quatro anos, mas familiares dos proprietários continuavam residindo no local. A construção era composta por três andares. O fogo queimou totalmente equipamentos de moagem, entre os cilindros, polidores, silos e eletrodomésticos. O perito Claúdio Machado pretende ter o resultado do levantamento em 30 dias para apontar a causa exata do incêndio.
Atualmente, as estruturas remanescentes, cobertas por musgo e abraçadas pela natureza, atraem fotógrafos e viajantes em busca de capturar o espírito de uma era perdida. As ruínas do moinho são como um gigante adormecido à beira da estrada, repletas de memórias vivas. Elas nos falam de resistência, transformação e lembram que o tempo, mesmo ao alterar paisagens, não destrói completamente a essência do que existiu. As mudanças não apagam totalmente a história, apenas a reescreveram. Ainda é possível encontrar vestígios do que foi, mas eles estão escondidos, como segredos à espera de quem os queira redescobrir.
Enquanto o Rio Redondo continuar fluindo, ele levará consigo as memórias de Antônio Ballardin, de seus filhos e do gigante que construíram com suas próprias mãos. A essência do moinho permanece, não apenas nas ruínas, mas no exemplo de trabalho, resiliência e amor pela vida. A história não se apaga, mas é reescrita a cada novo ciclo, a cada nova paisagem.
Texto: Robson Rangel Cioato

Robson Rangel Cioato, nasceu em São Marcos, RS, em 2 de dezembro de 1996, é professor, historiador e membro da Academia Luso-Brasileira de Letras do Rio Grande do Sul. Ao longo de sua trajetória, tem se dedicado à pesquisa histórica e à preservação da memória cultural, destacando-se pela vasta pesquisa genealógica de sua família, que inclui mais de 8.000 nomes em linha direta e conecta a história de seus ancestrais à Serra Gaúcha.
Em 2015, em busca continua pelos seus estudos históricos, colaborou com personalidades locais como Iracema Grison. Em 2018, contribuiu para a biografia da poeta Josephina Maria Cartier e participou de diversos eventos literários como o “Órbita Literária” e as celebrações do centenário de Vivita Cartier. Em 2019, fundou o grupo “Fotos Antigas, Sociedade e Memória do Rio Grande do Sul”, voltado à preservação das memórias fotográficas e históricas do estado.
Graduado em História, Robson também concluiu diversos cursos, e participou de importantes eventos como I Encontro Nacional de Filosofia e “Cafés com Sociologia” nas edições VII e VIII.
Atuou como voluntário no Centro de Valorização da Vida e como professor nas escolas municipais de São Marcos, Robson foi homenageado como “Guardião da História de São Marcos” e recebeu reconhecimento por seu trabalho como educador e preservador da história local. Em 2022, foi nomeado Diretor de Cultura da CIC São Marcos, cargo que exerceu durante o biênio 2022/2023.
Em 2023, Robson participou da antologia “Janelas da Alma” com o “Poema da Saudade”, e foi agraciado com a Comenda Barão de Mauá de Mérito Cultural e recebeu o Prêmio Luiz Vaz de Camões de Literatura.